• 19 Maio, 2017 às 15:11

    Afinal, o que acontece no recinto do Boom Festival?

    As boas práticas ambientais garantiram-lhe lugar de destaque no circuito global, mas o Boom Festival ainda não é apreendido na totalidade em Portugal. No fim-de-semana, depois de duas mortes, existiu quem acusasse a organização de opacidade. Mas quem o conhece por dentro elogia-lhe a transparência.

    Durante a manhã existe quem faça ioga, meditação, tratamentos de bem-estar orientados por terapeutas, contacto-improvisação, ou quem mergulhe na barragem e dance na tenda principal (dance temple) ao som do trance psicadélico, podendo optar por outras sonoridades electrónicas mais expansivas no alchemy circle, ou abandonar-se a harmonias ambientais nos chill-out gardens, aí ficando tranquilamente. À tarde o calor aperta. Procura-se sombra, apanha-se sol nas margens da barragem ou nada-se, assiste-se a uma das muitas conferências ou palestras na tenda liminal village, ou vai-se à área onde estão expostas obras com o cunho da cultura psicadélica. Os mais afoitos a caminhadas, ou os que possuem bicicletas, podem deslocar-se a um dos limites do recinto ao bar Funky Beach.

    Quando o dia começa a dar lugar à noite, o quase silêncio reina. O dance temple deixa de se ouvir. Ouvem-se gritos das brincadeiras das crianças. Contempla-se em celebração o pôr do sol. À hora de jantar as zonas de restauração enchem-se e quem quiser um hambúrguer não terá dificuldades, mas prevalecem os sabores exóticos globais ou iguarias do concelho de Idanha-a-Nova. A essa hora já começou a operar o palco sacred fire onde se podem ver concertos de nomes como Tó Trips & João Doce, Fandango, HHY & The Macumbas ou Fogo-Fogo, com o afro-beat a misturar-se com o fado ou o semba, perante um público com disponibilidade para tudo dançar.

    Durante a noite os diversos espaços enchem-se, mas até pode ser num recanto da floresta que acontece um espectáculo improvisado, juntando dezenas em redor de alguém com uma guitarra ou uma bailarina que dança entre as árvores. Vislumbram-se vultos, a iluminação é ténue, alguma dela provinda das esculturas que todos os anos são criadas por artistas de todo o mundo.

    Em geral sente-se civismo, diversão, respeito pela natureza, ausência de agressividade, criatividade na concepção do lugar, aposta em novas tecnologias de projecção de som e imagem e um misto de segurança e liberdade, perceptível até na forma descontraída com que a maioria se apresenta, de tronco desnudado. Não há publicidade. É um evento de pessoas para pessoas e não de marcas para consumidores. Existe a tentativa de pensar o mundo para lá dos padrões do mero entretenimento e uma sensação de espaço, o que não espanta pela área que o Boom Festival ocupa, na margem direita da albufeira de Idanha, distrito de Castelo Branco, na Herdade da Granja, com 150 hectares.

    De 11 a 18 de Agosto é o paraíso na terra? Não é isso, claro. O pó por vezes entranha-se e o cheiro das casas de banho nem sempre é agradável, apesar dos sistemas de filtragem das águas que melhoram o saneamento. Da mesma forma, quem for mais sensível à visão de corpos nus a banharem-se ou quem acha possível não encarar com pessoas que podem revelar sintomas de estarem sob o efeito de substâncias aditivas, no contexto de um ambiente recreativo onde circulam cerca de 35 mil indivíduos de 162 nacionalidades, mais vale ficar por casa.

    Dizer hoje que o Boom é um festival de música não faz sentido. Nem é sequer apenas um acontecimento de trance psicadélico. Algumas das tensões que suscita têm que ver com isso. Não é fácil situá-lo. Os americanos, que nestas coisas dos chavões são mais desinibidos, arranjaram um para classificar eventos similares: festivais transformacionais. Acontecimentos que valorizam a construção em comunidade, focando-se na sustentabilidade energética, na responsabilidade social e na expressão criativa, misto de música, arte pública e espiritualidade, com pessoas de todo o mundo. Foi assim que a Rolling Stone americana classificou o Boom, distinguindo-o ao lado de outros seis com características similares, entre ele o afamado Burning Man. E algo semelhante apontou o diário The Guardian, elegendo-o para figurar entre os dez festivais europeus a conhecer neste Verão.

    Internacionalmente tem uma excelente imagem. A prova é o facto de esgotar, com 85% das pessoas a virem da Europa – destaque para os franceses este ano –, dos EUA, Austrália, Japão ou outros destinos mais exóticos. Há dois anos existiu quem se queixasse que havia gente a mais – terão sido 43 mil. Por isso a organização reduziu a lotação para 33 mil. Os bilhetes, entre os 120 e os 180 euros, esgotaram-se em Dezembro, pouco mais de um mês depois de terem sido postos à venda. “Quisemos reduzir a lotação porque a ideia não é crescer em quantidade”, diz-nos Artur Mendes, um dos rostos da organização. “Poderíamos ter vendido o dobro, se quiséssemos, mas não é esse o conceito. Queremos qualidade, espaço e impacto mínimo na natureza.” Mas há outros sintomas que provam a respeitabilidade que o acontecimento goza no exterior.

    A entidade promotora, a Good Mood, e o Boom venceram na categoria máxima, por quatro vezes, o Greener Festival Award, atribuído pelo júri de uma ONG britânica que avalia mais de 500 festivais no mundo. E foram ainda premiados com um Green Inspiration Award em 2012 pelas inovações ambientais, e com um European Festival Award para o mais ecológico em 2010, para além de outras nomeações, participações em programas de conferências em todo o mundo e convites de prestígio – como o endereçado pelas Nações Unidas para fazerem parte do United Nations Music & Environment Initative.

    As várias soluções ambientais, a bioconstrução, a reflorestação que pretende aumentar a biodiversidade e recuperar as espécies autóctones, os sistemas de filtragem de águas ou a reciclagem que permitem melhorar o saneamento e testar soluções de arquitectura temporária e o facto de o festival fomentar a mudança social têm sido enaltecidos.

    Em Portugal, quase 20 anos depois da primeira edição, em 1997, ainda se sente que o evento bianual não é apreendido em toda a sua dimensão. Quem lá vai por norma deseja regressar. “Vim há dois anos e rendi-me”, diz-nos Marisa Garcia, arquitecta de 37 anos do Porto. “Mas quando digo que venho aqui, mesmo entre amigos informados, sou gozada: acham que venho por escape. E a minha pergunta é: o que é mais alienante, um acontecimento que tenta praticar aquilo que difunde com todas as fragilidades, ou ir a esses festivais onde tudo, do espaço à música, passando pelos conteúdos, é praticado em função de interesses comerciais?” Já quem nunca foi por vezes tende a estigmatizá-lo, associando-o a comportamentos de risco.

    Em parte essa tensão nunca será resolvida, até porque o Boom não deseja ser evento de atributos dominantes, assumindo-se como alternativo. Mas é ampliada quando acontecem dois óbitos, como sucedeu no fim-de-semana, com dois homens, um de nacionalidade chinesa, de 30 anos, e um outro holandês, de 43 anos, que entraram em paragem cardiorrespiratória, morrendo a caminho do hospital. As duas mortes não estão relacionadas, mas existem suspeitas de que entre as causas poderá estar o consumo excessivo de substâncias psicoactivas.

    É apenas nesses momentos que toda a gente se parece interrogar sobre o que se passa, afinal, no Boom. É apenas a partir daí que os olhares se concentram na Herdade da Granja. Parte dos media acusam a organização de opacidade. Esta diz que parte dos media é apenas sensacionalista e não consegue projectar um olhar total sobre o evento. Ambas as partes terão a sua quota-parte de razão, mas existe algo de que quem lá vai não pode acusar a organização: de falta de clareza.

    Não existe outro evento em Portugal, festival, queima das fitas ou arraial, com tanto espaço para debater tensões sociais, comportamentais, ambientais ou políticas. Ali não se nega que existe quem consuma substâncias psicoactivas em ambientes recreativos. Tenta-se, sim, compreender e enquadrar essa realidade, fomentando uma estratégia no sentido da redução de riscos, encarando a questão de forma responsável, discutindo o assunto e convidando especialistas reputados ao terreno. Esse esforço de clareza era assinalado há dias pelo presidente da Câmara de Idanha-a-Nova, Armindo Jacinto, entusiasta do evento. “O Boom é um dos festivais mais transparentes do país”, afirmou então.

    A sua alusão ia muito além das questões mais polémicas, falando do facto de as águas serem analisadas e tratadas por engenheiros do ambiente, ao abrigo de parcerias com a Universidade Católica do Porto, ou com a Universidade da Extremadura, ao nível dos compostos. Como diz Artur Mendes: “Se no início o Boom era para a malta da música e dos estilos de vida alternativos, hoje também chegamos a pessoas das ciências que utilizam o festival para testar modelos, ou seja, também queremos produzir conhecimento.”

    Da mesma opinião é Maria do Carmo Carvalho, professora na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica, e coordenadora do kosmicare, área do festival pensada para melhorar a intervenção e minimizar danos causados por crises psicológicas após o consumo de substâncias psicoactivas. O projecto, que não se sobrepõe aos serviços de emergência médica normal, foi proposto há dez anos à organização do festival e ao SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), a agência nacional que trata das questões dos consumos e adições, presidida pelo perito João Goulão, que esteve presente numa palestra em 2014. “O kosmicare é concretizado ao abrigo de uma parceria singular”, diz-nos ela, “entre a Universidade Católica, a agência nacional com responsabilidades na saúde relacionada com os consumos e a organização do evento”.

    O financiamento do serviço é assegurado pela Good Mood, representando este ano 70 mil euros de investimento. “O SICAD tutela o que acontece aqui e liberta alguns recursos humanos e a universidade permite um enquadramento de investigação mais académico, mas é a organização do festival que financia e suporta tudo”, assegura ela, dizendo ser esse um caso singular no mundo. “O Boom assumir a título privado esta tarefa, que é um investimento caro, quando este tipo de resposta deveria estar disponível em muitos outros ambientes recreativos onde há pessoas por motivos de diversão, é único”, expõe.

    No kosmicare trabalham 120 pessoas, a maioria voluntários, entre psiquiatras, enfermeiros ou terapeutas, obedecendo a organização do serviço a uma metodologia estabelecida há vários anos, havendo uma equipa de coordenação, uma equipa médica com experiência na área das substâncias psicadélicas e uma estrutura organizada por cinco equipas que rodam de 12 em 12 horas. “Tenho uma enorme confiança no trabalho que aqui é desenvolvido, ao nível da emergência psicológica, e temos a evidência de que ele funciona”, afirma, afiançando que “estes casos, quando não são devidamente abordados, podem transformar-se em problemas de saúde mental com graves repercussões na vida das pessoas”. O que aconteceu com o cidadão holandês que veio a morrer não abalou a sua segurança no serviço disponibilizado.

    Fonte: http://www.publico.pt